Monday 2 November 2009

Prólogo

"O dia estava ameno, talvez demasiado húmido para ser considerado perfeito. Uns quantos raios de Sol rasgavam nuvens cinzentas e opacas.
Mais um serão vazio e a cadela faminta, como sempre, eram tudo o que tinha à espera... por isso deixou-se ficar. Conversou um pouco mais, riu um pouco mais, teimando contra o tempo, denso, pastoso. Cedendo, por fim, fumou um cigarro e dirigiu-se para o metro de auscultadores nos ouvidos.
Aguardando não mais que um lento regresso a casa, algo a surpreendeu sorrindo. Sorria, de facto. Não para si, mas sorria. Nesse sorriso podia compreender todas as gargalhadas passadas e futuras. Sem se aperceber, enquanto observava, sentiu ciúmes de todos os momentos que aquele rapaz sorridente havia partilhado com outros e não consigo. Desejou-o. Desejou ser o motivo de todos os seus sorrisos, lágrimas, sussurros, medos, sonhos...
O rapaz desconhecido retribuiu-lhe o olhar, sentindo-se observado, quebrando-lhe por instantes a fantasia a que se entregava, ela colou os olhos ao solo. Repreendeu-se, assumindo-se de novo; ainda que, passados instantes, se dedicasse de novo a olhá-lo. Agora, mais consciente, observava-o com a moderação possível, tentando cristalizar o rosto que lhe relembrava tudo o que existe em potência na relação entre duas pessoas, algo que estivera submerso, adormecido como um animal sedado.
A estação terminal seguiu-se, na dispersão do final do percurso ela antecedeu-lhe os passos, como que em fuga, envergonhada pela liberdade a que se dera durante a viagem.
Tentou acalmar-se com um cigarro, mas a angústia foi veloz e instalou-se. Nunca mais o veria, pensou, nem a ele, nem ao seu sorriso cheio de promessas. Oh e era já bem mais que angústia, era uma raiva mutilante ao reconhecer que a sua frágil memória não seria capaz de lhe fornecer mais do que sombras do que havia visto passado pouco tempo. Como era cruel o tempo e a memória!
Tinha amado aquele estranho por um momento.
Aquietou-se. Afinal de que lhe serviria o rapaz? Podia amar a ideia. É certo que existem muitas pessoas que amam uma ideia por toda a vida e que não são capazes de fazer o mesmo por uma pessoa.
Mas, assim sendo, porque ansiava ainda ver aquele rosto outra vez? Sentir o mesmo pulsar. Talvez a ideia não fosse suficiente, pelo menos não tanto quanto a sensação de estar a dois metros dele, questionar, qual seria o seu cheiro, como havia feito antes, na carruagem de metro, entre os estranhos."

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