Tuesday 3 November 2009

Capítulo I

"Rita marchou até casa, exausta, descontente e insegura.
Os latidos chegaram até si aquecendo-lhe um pouco o coração gelado de incertezas. Afagou o pêlo macio da cadela admirando-lhe as orelhas pendentes e ondulantes. Preparou uma porção de ração e ofereceu-lhe um biscoito, o que lhe devolveu uma nova rajada de latidos.
Enterrou-se na cama enquanto a sua única companheira engolia, quase sem mastigar, a refeição.
Passados minutos a fadiga venceu-a e adormeceu. Deu por si a sonhar com o rapaz, o princípe do metropolitano, olhava descaradamente para ele e para o amigo com quem conversava. Alegres e alheios à sua presença os dois companheiros riam e trocavam comentários, toda a carruagem ria como se invadidos por uma súbita euforia a que Rita permanecia imune e surpresa. O riso foi-se tornando mais pesado, tornando o ar denso. Semelhantes ao som de tambores, gargalhadas brotavam por todo o lado, ferindo-lhe os ouvidos de forma aguda.
Um a um, o olhar de cada passageiro dirigiu-se para ela e sentiu-se exposta e mortificada. Apressou-se a sair na estação que se aproximava mas os dois amigos seguiram-na. Podia sentir os seus olhos perfurando-lhe as entranhas enquanto se afastava, sugando todas as fantasias de menina que tivera com o seu princípe agora transformado em vilão. Saqueavam-lhe a mente, levando o que deveria permanecer secreto. Entre gargalhadas gritavam para ela "O Amor é puro demais para os cobardes, para os escravos do medo. Foge!" E ela fugia, corria tanto quanto conseguia e via a sua cadela a correr ao seu lado, abocanhando-lhe a mão e impulsionando-a para longe... Acordou confusa enquanto a cadela lhe lambia a mão, exigindo um breve passeio à rua. Expirou profundamente num suspiro.
Nesse serão o episódio do metro e o sonho não lhe abandonaram os pensamentos, ambos perturbadores e resistentes.

A manhã despontou mais clara que a anterior, o Sol, menos tímido, destribuia calor com generosidade.
Mais calma deixou-se ficar na cama a ler, hoje faria o turno da noite no cinema onde trabalhava, teria toda a manhã para si. A cadela ressonava baixinho ainda aninhada ao seu lado, aquele som ritmado e tranquilo trazia-lhe sempre serenidade.
Não tinha jantado na noite anterior e não sentia fome, só a urgência de fumar um cigarro, maldito hábito pensou.
Levantou-se por fim, cedendo à tentanção mas não quebrando a regra imposta por si "Nunca fumar na cama".
Contornou as memórias do dia anterior enquanto inalava, não deixaria que a afectassem. Só mesmo alguém muito só e patologicamente fantasioso se deixaria abalar por algo com tão pouca importâcia, talvez fosse o seu caso..."
(continua)

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